À medida que a Saga
das Pedras Mágicas se aproximava da conclusão, uma pergunta impunha-se: qual o
rumo a seguir, depois de uma aventura tão amada, complexa e bonita? Eram muitos
os leitores que me pediam que me dedicasse à história da nossa «nação valente e imortal»… E sempre que
isso acontecia, a imaginação conduzia-me ao reinado de Dom João I e às proezas
dos seus filhos, em especial do infante Dom Henrique, talvez porque esse é o
período da História de Portugal que mais me cativa. Contudo, não queria
escrever um romance puramente histórico… E como abrilhantar com magia feitos
que, sendo reais, só por si são verdadeiramente fantásticos? Por isso, a todos fui
respondendo que esse seria um projeto de grande responsabilidade, que exigiria uma
pesquisa aprofundada e mais maturidade… No futuro, com certeza! Mas não para
já!
Confesso que não consumi
muito tempo a congeminar no que, efetivamente, iria fazer. Ao longo da Saga, sempre
me deixei guiar pelo coração e nunca impus barreiras à imaginação. Quando acabava
um livro, prontamente iniciava outro. Por isso, e como tenho imensas ideias às
quais gostaria de «dar vida», confiava que a «revelação» do projeto que haveria
de me «absorver» surgiria com naturalidade, no momento em que escrevesse a última
linha da Saga… E, no fim, assim foi!
Após terminar
«Sombras da Noite Branca», entreguei-me à composição de uma narrativa inspirada
num sonho que me emocionou durante a escrita de «O Filho do Dragão», convicta
de que tomara a decisão correta. Afinal, se essa ideia surgira de forma tão
especial, alguma razão devia existir! Estava tudo a correr bem… Até que, inopinadamente,
«coisas estranhas» principiaram a acontecer.
Durante um encontro
com amigos, os mais pequenitos divertiram-se a rebuscar livros na minha estante.
Ao arrumá-los, constatei que possuíam um tema em comum: corsários e piratas. De
imediato, fui transportada para uma das «histórias inacabadas» da minha
adolescência: um «esboço» das aventuras de uma jovem inglesa que é forçada a
casar-se com um fidalgo português muito mais velho, para saldar uma dívida de
família. Porém, ao atravessar o oceano que divide os dois reinos para celebrar
o enlace, o navio onde viaja é atacado por piratas…
Nesse mesmo dia, percebi
que o destino estava a tentar-me… E os reptos continuaram! Em casa de um amigo,
abri um livro e lá estava: o infante Dom Henrique e os seus corsários. Na
televisão, o melhor contador de histórias de sempre, o meu querido e saudoso
Professor José Hermano Saraiva, falava dos Descobrimentos… E como se isso não
bastasse, dei por mim a ser fustigada com histórias sobre os Açores, imagens
dos Açores, lendas dos Açores, conversas sobre viagens aos Açores, notícias
sobre os Açores, até programas de culinária gravados nos Açores! Tentei
manter-me fiel ao projeto que abraçara… Todavia, do nada, surpreendia-me a
pensar no infante Dom Henrique, nos seus corsários, nas ilhas dos Açores e, muito
timidamente, numa ideia guardada num caderno com quase trinta anos.
Certa noite, num
impulso, dirigi-me à minha estante e agarrei, precisamente, no livro do
Professor José Hermano Saraiva, das Publicações Alfa, de 1993. O acaso fez-me
abri-lo na página 142… No entanto, ao deparar com o título: «As ilhas», inferi
que o que estava a acontecer não era, de todo, obra do acaso! Comecei a ler… E
qual não foi o meu espanto quando, nas últimas linhas da página 145, verifiquei
que a descoberta dos Açores por Diogo de Silves não é consensual. E essa «incerteza»
da História foi a gota de água que fez transbordar a minha imaginação! Durante
bastante tempo, fiquei cega e surda para a realidade. De repente, era como se o
meu fascínio pelo infante Dom Henrique, a emoção das Descobertas, as aventuras
de corsários e piratas e, talvez, as ilhas mais belas e misteriosas de Portugal
se estivessem a «fundir» com a história guardada no meu caderno.
«Vou escrever só duas
ou três páginas!», decidi, achando que, assim, o entusiasmo quase obsessivo que
me andava a perturbar e a distrair acabaria por se apaziguar. Mais tarde, teria
oportunidade de voltar a essa «nova» história com a devida calma. Porém, à
medida que Constance descia as escadas do palacete de Águas Santas e encarava
Nuno Garcia, fui acometida pela mesma paixão fulminante que me subjugou durante
a escrita da Saga… E, terminado o prólogo, os gritos de Guida já ecoavam na
minha cabeça: «Não me apanhas! Não me apanhas…» E o seu desafio não era apenas
para Leonor! Era para mim também! Respirei fundo, rendi-me e lancei-me atrás
dela.
A Verdade inscrita na Fantasia ou a Fantasia
inscrita na Verdade?
Antes de mais,
importa dizer que «Crónicas da Terra e do Mar» é um romance de ficção histórica.
Apesar de me ter inspirado em episódios que fazem parte das proezas do nosso
povo, a minha intenção não foi, nem é, centrar-me exclusivamente na «verdade irrefutável
dos factos». Outros escritores foram, são e serão movidos por esse apelo e poderão
concretizar esses projetos melhor do que eu, que respiro no universo da
fantasia. Contudo, também se impõe clarificar que «Crónicas da Terra e do Mar»
não resulta de um simples devaneio pelos trilhos da imaginação. Existem muitas
«verdades» nesta narrativa «fantástica». Então, onde se inicia e onde termina a
linha que divide aquilo que incontestavelmente aconteceu daquilo que provém da
minha inspiração?
Como vos contei, a
descoberta das primeiras ilhas dos Açores por Diogo de Silves ainda inflama os
debates dos historiadores. Na minha pesquisa, deparei com muitos pontos de
interrogação sobre essa questão. Inclusive, descobri que não existe consenso quanto
ao apelido do suposto «Diogo» que pilotava a barca ao serviço do infante Dom
Henrique. E foi esse facto que desencadeou este processo criativo. Porque não poderia haver outro Diogo a bordo…? O «meu»
Diogo?
No decorrer desta aventura,
as personagens que criei irão cruzar-se com personalidades reais. Devo frisar
que qualquer semelhança que possa existir entre as «minhas personagens» e uma eventual
«personalidade real», (à exceção de Gomes Eanes, sobre o qual falarei de
seguida), terá sido mera coincidência. Facilmente se compreende que todas as
interações das minhas personagens fazem parte do meu imaginário. No entanto,
nas cenas em que elas se relacionam com personalidades históricas, torna-se
conveniente fazer a distinção entre a fantasia e a realidade.
Como exemplo, para
melhor entendimento, em «O Olhar do Açor» as conversas de Nuno Garcia com o infante Dom Henrique
nunca ocorreram, porque Garcia pertence ao mundo da fantasia. As peripécias que
os dois partilharam foram concebidas dentro do contexto ficcional desta
narrativa, ainda que tendo em conta a personalidade «conhecida» do infante… No
entanto, por outro lado, os acontecimentos relatados por Nuno Garcia, como a
conquista de Ceuta e o momento em que Dom João I arma os seus filhos cavaleiros na
mesquita convertida em igreja, com a espada que a sua mãe, Dona Filipa de
Lencastre, lhes ofereceu, são episódios verídicos da nossa História. Apenas,
como é óbvio, Garcia não se encontrava presente para testemunhá-los.
Creio que o acima
descrito é elucidativo de como a realidade e a fantasia se misturam nas
«Crónicas da Terra e do Mar»… Todas as situações idênticas cingem-se pelas
mesmas regras e foram escritas com o maior respeito pela nossa História. Por
isso, apresento desde já as minhas desculpas por qualquer incorreção factual
que, sem querer, possa ter cometido. O meu desejo é divertir-vos e comover-vos
com os ornatos da narrativa. Se, em simultâneo, sentirdes a curiosidade de
descobrir ou aprofundar a «verdade histórica», ficarei duplamente satisfeita.
Gomes Eanes e Gomes Eanes de Zurara
Gomes Eanes, o estimado amigo de Viriato Gonçalves Vaz, que chega ao palacete de Águas Santas para desfrutar de uns dias de descanso, é uma personagem «minha». Todavia, em contraste com as outras que criei, foi inspirada numa personalidade real: Gomes Eanes de Zurara.
Zurara foi Comendador
da Ordem de Cristo, tendo sucedido a Fernão Lopes como cronista-mor do reino e
guarda-mor do Arquivo Real da Torre do Tombo. Salienta-se que parte da
informação que chegou até nós sobre os acontecimentos da época se deve às
crónicas por ele escritas. Ao tomar conhecimento do seu relato da partilha dos
escravos capturados no golfo de Arguim, fiquei tão impressionada que, de
imediato, quis inseri-lo na minha história. Como cronologicamente o sucedido
coincidia com a conversa daquele jantar de amigos, serviu na perfeição para
ilustrar não só a realidade histórica do citado dia em Lagos, mas também para
desvendar os pensamentos de Luís Fidalgo e dos demais convivas. No entanto, sublinho
que esse é o único evento que liga o «meu» Gomes Eanes ao verdadeiro Zurara.
Águas Santas
Em «O Olhar do Açor»,
grande parte da ação desenrola-se numa propriedade rodeada de lendas e
atravessada por ribeiros cujas águas se crê possuírem bênçãos curativas. Foi
essa a razão por que decidi chamar-lhe «Águas Santas». Importa esclarecer que a
«minha» Águas Santas fica situada a norte do Tejo, a pouco mais de uma semana
de viagem a pé de Lisboa… E é fruto da minha imaginação! Achei que o exercício
de medir distâncias no mapa, para tentar atribuir uma realidade física ao lugar
que desenhara na mente, seria improfícuo e nada acrescentaria ao brilho da
história. Também não pensei que a existência de uma «verdadeira» Águas Santas
fosse impedimento para a criação da «minha» Águas Santas, uma vez que existem
muitos lugares em Portugal que partilham o nome, tais como Santana, Zambujal e
Charneca, só para citar alguns entre tantos.
Em conclusão…
Assim ficam
justificadas as opções que tomei e explicadas as linhas que tecem esta história
que, como vos disse, surgiu de uma paixão inesperada e arrebatadora… Como
todas as paixões que nos marcam para a vida! Espero, sinceramente, conseguir
transmitir-vos essa emoção ao longo desta viagem.